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Nós que aqui estamos, por vós (voz) esperamos

Resenha do livro As Aventuras de Miguel Littín Clandestino no Chile, de Gabriel García Márquez.

Qualquer livro de Gabriel García Márquez é um alento aos leitores, trazendo uma leitura extremamente fluida e interessante, deixando o livro fácil de ler e de se deixar absorver por suas palavras. Neste livro, porém, o autor não trabalha com um realismo fantástico característico latino americano, e sim, trata de mostrar uma realidade, talvez como ela realmente foi, a partir da memória de seu protagonista: o cineasta Miguel Littín, que, depois de exilado pela ditadura de Pinochet, retorna clandestinamente a seu país para gravar os resultados e os pormenores da ditadura ainda em ação no país.

A obra foi escrita a partir da memória de Littín, que contou sua história a García Márquez, claro que foi enxugada no livro, uma vez que se tinha muitos dados a respeito de sua viagem proibida (18 horas de áudio). Isso não diminui de maneira alguma as característica de relato que o livro se postula a fazer. Todo narrado em primeira pessoa, ele tenta aproximar o leitor dos acontecimento, fazendo com que este pareça plausível e irresistivelmente sedutor.

Segundo o microhistoriador Giovanni Levi: “Se a nossa pesquisa fosse sobre acontecimentos atuais, obviamente poderíamos dar uma organicidade diferente às informações recolhidas, simplesmente interrogando os protagonistas” (Herança Imaterial; 2000, p. 89) é isso que ocorre neste livro, trata de desenvolver-se, quase que, a mercê da memória, e nada mais que ela. Ela é parcial, claro, mas não deixa de ser uma visão que pode ser entendida e estudada por muitos, uma vez que Littín tem muito a dizer. É quase obrigatório ver os filmes feitos por ele naquelas 6 semanas de 1985 e ler este livro.

Quando se trata de memória, segundo Freud, ela tem um caráter seletivo. Podemos postular, ainda, que a memória tem menos ou mais parcialidade que um documento escrito e dito como “imparcial”? Até que ponto a história que Miguel Littín conta à García Márquez tem, ou pode ter, um caráter coletivo?

O documento escrito tem sim sua parcialidade, uma vez que foi escrito por alguém de seu tempo, vinculado à uma sociedade com suas próprias características. Nele pode haver, no Antigo Regime por exemplo, menos evidência dos pobres e das mulheres como parte ativa da sociedade, dando ênfase ao homem, além de referenciar às personalidades mais “importantes”. Tornando os “outros” passivos. O que já sabemos não ser a pura verdade daquele tempo, uma vez que, como Giovanni Levi nos mostra no livro A Herança Imaterial, que em Santena (Piemonte, Itália) havia sim agencia dos mais pobres e das mulheres, seja na venda de terras para a sua segurança, ou no empréstimo de dinheiro, o que, passa despercebido à uma ideia de história total e estruturalista, que busca se apropriar da história de forma quantitativa generalizante, esquecendo-se dos detalhes, que muitas vezes podem ser imprescindíveis ao entendimento da História.

Caminho

Pela memória, pode-se ter um caminho sinuoso mas, de certa forma, esclarecedor. A memória seleciona os acontecimentos mais importantes, deixando de lado o dia-a-dia, mas mesmo assim ela enche alguns buracos na História, mesmo que para alguns, por vias secundárias, ou até mesmo inexistentes à complexidade histórica de um período.

Este livro não tem a pretensão de dar uma verdade histórica, e sim de contar uma história, mesmo que em um momento complicado do Chile e baseada em fatos reais. É, como o título já diz, uma aventura nostálgica, revigorante e indiscreta. Mas podemos sim retirar dela, pontos importantes da História, não de estória. Como o toque de recolher e a aflição para chegar em casa a tempo. O cochichar nos parques. Os partidos contrários à ditadura e a luta clandestina. Tentativa homicídio à Pinochet em um hotel de frente ao Palácio da Moeda.

Santiago parece calma, sem policiamento. Ela está vivendo normalmente. Apesar de ter sido praticamente um campo de batalha. Mas em suas entranhas, há discussões, obsessões, tirania, rebeliões, protestos. Ela é um vulcão prestes a explodir. Para o protagonista, ela é agoniante, diferente, sedutora e nostálgica. Talvez sejam estas as sensações que quem lê se depara também. Dando ao leitor, suas memória, fazemos delas vividas em nossas cabeças. Tal memória, nos da uma imagem, seja ela inusitada, nítida do ocorrido, mesmo parcial, nós vemos o acontecer diante de nossos olhos e perante os olhos de quem nos conta.

Littin gravou mais de sete quilômetros de filme, que no final, renderam um filme de quatro horas para a televisão e um filme de duas horas para o cinema. “Acta General de Chile”, seu filme tem um caráter muito mais documental, não deixando de ser pessoal, passando por lugares de nostalgia para o autor. Assim como a reportagem feita em livro por Gabriel García Márquez. “Preferi conservar a narrativa em primeira pessoa, do jeito que Littín me contou, tratando de preservar dessa forma seu tom pessoal – e as vezes confidencial -, sem dramatismos fáceis nem pretensões históricas” (p. 6 – 7)

“Pelo método da investigação e pelo caráter material, esta é uma reportagem. Mas é mais: é a reconstrução emocional de uma aventura cuja finalidade última era sem dúvida muito mais profunda e comovedora que o propósito original e bem sucedido de fazer um filme driblando os riscos do poder militar. (…) Littín: ‘este não é o ato mais heroico de minha vida, é o mais digno’ ” (p. 7)

Littín queria mostrar as verdadeiras faces da ditadura com seu filme, García Márquez queria transcrever os sentimentos de viver sem sua pátria, as nostalgias de voltar a se encontrar com monumentos nunca esquecidos, lugares saudosos e ao conforto de seu lar, reconstruído perfeitamente por sua mãe.

A memória coletiva tem de se formar a partir do individual, entre os conflitos de ideias. Sem conflito, não se pode haver consenso. Assim como a memória coletiva, atinge diretamente a memória individual, cada singularidade atinge o geral. Cada micro atinge o macro. A memória de Miguel Littín, mesmo sendo imperfeita, ela é sua memória, ela é o individuo. Memória pode mudar de peso e identidade, mas não pode mudar de individuo, e sim transmitida. Ela pode diferenciar-se de pessoa para pessoa, mas cada um tem, em si, a memória que lhe é formulada. Cada um tem em si, o que lhe cai bem lembrar. Alguns preferem esquecer, recordar, mas Miguel Littín, resolveu contar. Littín e García Márquez esperam que suas vozes sejam ouvidas, bradadas a todo fervor de seus peitos. Pulmões antigos, cheios de cigarros franceses, mas não sem ar para gritar.

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Última atualização em 23/01/2017 00:00
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